Hoje é dia de Maria
18 de janeiro de 2005 - Jose Rocha

Não consigo assistir a um capítulo inteiro da minissérie Hoje é dia de Maria, apresentada pela TV Globo. Baseada no folclore brasileiro, rico como é, a história me leva à infância nos quintais de Fortaleza – quando havia quintais -, me leva à infância no sertão de Banabuiu, de Jaguaribe, onde moramos, eu, minha irmã Ângela e meus pais – Ana Cristina, a caçula, só nasceria em 1970, com a família já de volta à capital.

Digo – e escrevo sempre – que uma das imagens mais bonitas que fotografo em minhas lembranças é a de minha mãe varrendo o chão de terra vermelha, num amanhecer – vermelho, lindo - de Jaguaribe. Eu mesmo dizia isso a ela, em nossas longas conversas ao pé do fogão, depois do almoço, depois do jantar. Aquela imagem me parece fotografada, um postal eterno no meio da minha memória.

Faz um bem enorme me lembrar desse dia, que não sei que dia foi, há muito, muito tempo, num amanhecer vermelho, lindo, de Jaguaribe. Ela me contava histórias, bonitas histórias, algumas as mesmas que conduzem o roteiro de Hoje é dia de Maria. Por isso não consigo acompanhar a minissérie, de uma qualidade irretocável, e de uma emoção à flor da pele, que me parece atravessar a pele lá de dentro, do coração.

Tive uma infância feliz – a felicidade, às vezes, é não saber o tamanho do sofrimento, e, assim, não guardo tristezas de meus verdes anos, como escreveu José Lins do Rego, o menino do Engenho. Minha mãe me escondeu a verdade de minha infância pobre, de menino pobre, mas criado à sua sombra, sob a sua proteção - de mãe.

Meu pai, triste ele era, foi um trabalhador ao pé da letra, e penso, de vez em quando, que passou do pé da letra. Trabalhou demais, mas trabalhou muito – carregou pedras em Banabuiu e Jaguaribe, cuidou de um hotel, o Cruzeiro, da família Diógenes, bem na entrada de Jaguaribe, e só não fez o que eu não me lembro. Meu pai, sim, meu velho pai, Manoel Monteiro de Sousa, lá de Santana do Acaraú, foi um trabalhador como eu nunca vi.

Era bom ser criança. Acho que ter crescido, ter chegado à idade adulta, foi uma crueldade. Porque a inocência foi embora, ela, a inocência, que foi quem me deixou primeiro. Era bom ser criança – pobre e feliz, do sertão para a capital, da capital para o sertão, na busca inadiável de trabalho e sustento, de riso e alegria que meus pais me deram, presentes únicos, imperativos.

Hoje, daquela família que nasceu na cidade e cortou o sertão, para sobreviver, restamos apenas eu, minha irmã Ângela e minha doce irmã Ana Cristina, ainda uma criança, aos quase 35 anos. Minha mãe, Maria, sim, Maria Letícia, nos deixou em outubro. Meu pai, Seu Manoel, foi levado por um câncer, em julho de 2003, sem nunca ter conseguido realizar um dos grandes sonhos de sua vida: voltar a Fortaleza.

Minha mãe, que passou o mês de setembro inteirinho em nossa capital, voltou feliz, revigorada, cheia de novas histórias para contar sobre como anda nossa terra, como andam os parentes, como ainda brilha o sol que encanta e faz douradas nossas raízes.

Minha mãe, que me amparou com a perda de meu pai, e foi meu alicerce, não teve tempo de me contar suas novas histórias. Ela, uma Maria, foi chamada por Deus há exatos três meses, os três meses que mais me doem, que mais me abrem o peito, numa dor que parece não ter mais fim. Hoje é um dia triste, diferente daqueles que povoam minha infância colorida. Hoje eu não quero escrever, não quero sair, nem me lembrar de nada, porque dói, dói profundamente saber que agora, todo dia, dia após dia, é só mais um vazio e solitário dia sem Maria.
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José Rocha, 44, é autor dos livros “Espelho quebrado”, “Batatas fritas ao sol”, “O verbo por quem sofre de verborragia”, “Coração de Leão” e “A lua do meio-dia” (no prelo).

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