“O canto das hienas”
20 de janeiro de 2005 - Jose Rocha

Torquato Neto, um dos gênios do Tropicalismo, cuja obra completa (pelo menos a conhecida) acaba de ser lançada, em dois volumes, 37 anos depois de sua morte, é o retrato mais fiel do que disse o escritor existencialista francês Albert Camus, de que só há um problema filosoficamente sério: o suicídio.

Torquato, que, como diria João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”, “pulou para fora da vida” na madrugada seguinte ao seu aniversário de 28 anos, deixou o famoso bilhete “Pra mim chega”, espatifou a máquina de escrever e pediu para que ninguém tirasse o sono de seu filho Thiago.

Triste, como Caetano o descreve em “Cajuína”, Torquato Neto desistiu de existir, abortou sua existência, como muita gente, dia após dia, pelo mundo afora, insatisfeitas com os sonhos que não se realizam, revoltadas com os projetos que dão em um nada absoluto. Um contista de primeira, mas que ninguém reconheceu, o bom Elmer Bradbury, fez o mesmo no começo dos anos 90. Botou um disco do Pink Floyd na vitrola, um Pink Floyd com Sid Barret, e se envenenou.

Seu pai, Amós Bradbury, com quem trabalhei, deixou comigo os dois únicos textos inéditos de Elmer, que guardo na minha biblioteca. O único livro que Elmer publicou, “O canto das hienas”, que saiu com o selo de uma editora que não merece ser citada, e que foi pago por ele – o velho golpe dos “independentes” – é um espetáculo de qualidade, mas quase um aviso aos navegantes: de que o filho de Seu Amós se mataria.

Uma carta de Marcos Rey abre o livro, como prefácio, dando conselhos ao jovem Elmer, com vinte e poucos anos naquele começo de década. No meio do texto do autor de “Quem manda já morreu” e uma série infinita de livros infanto-juvenis, está o conselho para que Elmer Bradbury “tenha paciência e não desista nunca de seus sonhos”, com os sinceros elogios ao texto, segundo Marcos Rey, um dos mais “limpos e raros” dos últimos tempos.

Elmer, como Torquato, não esperou. Numa manhã qualquer, de um dia qualquer, tomou veneno, botou o disco do Pink Floyd na vitrola e dormiu, assim, de verdade – não é força de expressão. Quando o encontraram, o disco rodava sozinho, feito um carrossel abandonado, e não havia bilhete algum. Seu Amós, pessoa de uma sensibilidade à flor da pele, descendente de Ray Bradbury, sim, não é coincidência, morreu muitas vezes naquela manhã.

Eu, pessoalmente, que na época morava em Barueri, na Grande São Paulo, sugeri, com outros amigos, ao prefeito da época que desse o nome de Elmer à Oficina de Artes do município. Era uma forma de marcar, como se marca o gado, com uma frase tipo: “Elmer, senhores, passou, sim, por aqui, e vocês nem viram”. Assim foi feito. Mas um dia, um secretário de cultura (sic) daquela cidade transformou a Oficina de Artes Elmer Bradbury numa cozinha literalmente.

É o mundo-cão. O mesmo que Torquato Neto mandou para aquele lugar e negou tudo, até mesmo quem ele era. Mas a obra de Torquato, que permanece, quando sai, nesses dois volumes, me parece de uma ambigüidade tacanha. De um lado, “resgata” a obra do poeta piauiense. De outro, mostra o cinismo que cerca o mercado editorial brasileiro. Um poeta morto vale mais que dois vivos? É o que parece, não é?

José Rocha é escritor e jornalista, autor dos livros "Espelho quebrado", "Batatas fritas ao sol", "O verbo por quem sofre de verborragia", "Coração de Leão" e "A lua do meio-dia" (no prelo).

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