O assassinato da irmã Dorothy
21 de fevereiro de 2005 - Jose Rocha

O assassinato da missionária Dorothy Stang, em Anapu, no Pará, é o primeiro crime de violação dos direitos humanos a ser transferido para a Justiça Federal. A decisão de propor a transferência ao Superior Tribunal de Justiça foi anunciada pelo Procurador Geral da República, Cláudio Fontelles, e estampou a página principal da ONG (Organização Não Governamental) Greenpeace já na segunda-feira, 14, dois dias depois do crime. A ONG informa que a medida só foi possível graças à reforma constitucional do Judiciário, aprovada no final de 2004.

De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), há 25 pistoleiros com mandado de prisão, mas livres no Pará. O clima de medo na região é tão grande que a prefeita de Medicilândia, Leni Trevisan, disse aos ministros Nilmário Miranda e Marina Silva que se sentiria mais segura “sem a presença” da polícia do Estado no município.

Segundo o Greenpeace, que faz séria campanha denunciando a violência no Pará e em outros Estados da região amazônica, tanto o governo paraense quanto a Polícia Federal sabiam das ameaças contra a vida da irmã Dorothy – foram avisados diversas vezes pela Procuradoria da República no Pará. O Ministério Público já havia feito as denúncias quanto aos riscos de conflito nos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), defendidos pela religiosa e pela comunidade. O Greenpeace informa ainda que encaminhou, em novembro, a partir das denúncias da irmã Dorothy, um ofício ao Ministério da Justiça e à Diretoria da Polícia Federal solicitando providências urgentes no caso.

Em meio ao fogo cruzado em que se encontrava a irmã Dorothy, o Procurador da República do Pará, Felício Pontes, encaminhou cinco ofícios ao superintendente da PF do Estado, José Ferreira Sales. Outras autoridades alertadas em 2004 foram o Secretário Especial de Defesa Social paraense, Manoel Satino Nascimento, e o Corregedor Geral e subcomandante da PM, coronel Rubens Lameira Barros.

Entre as propostas encaminhadas anteriormente pelo Greenpeace ao governo, pode ser destacada a realização do zoneamento econômico e ecológico na Amazônia. Essa medida visa garantir a posse da terra e o uso sustentável dos recursos naturais às populações e aos assentados da região, além de fortalecer a presença do Estado. Enquanto isso, as acusações começam a ganhar corpo depois da repercussão do crime, semelhante ao assassinato do líder seringueiro Chico Mendes. O “Diário do Nordeste”, em matéria publicada na terça-feira, 15, destacou as palavras do coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra, Isidoro Reeves, que culpa o governo federal pelo assassinato da missionária. Ele lembra – e está absolutamente certo – que nenhum governo, em toda a história do Brasil, e isso é muito grave, jamais assumiu uma posição de autoridade para resolver a questão agrária e brecar a grilagem. Na mesma reportagem, o DN divulgou que, segundo a Pastoral, há 110 pessoas ameaçadas de morte por conflitos de terra no Brasil.

A Anistia Internacional condenou a morte da freira. Para a ONG, os governos estadual e federal precisam acabar com a violência e o medo. A manifestação da Anistia não é novidade, já que, não é de hoje, o governo brasileiro – e não especificamente o atual – nunca buscou desarmar os grupos organizados ou fazer reformas para proteger os ativistas contra as constantes ameaças de morte.

Enquanto o governo discute – mas discute demais e age de menos – o que fazer no Estado, os números divulgados pela Anistia Internacional são alarmantes. Entre 1985 e 1996, por exemplo, 976 pessoas foram mortas devido a conflitos em regiões rurais do Brasil, de 1985 a 1996 -apenas cinco acusados foram presos. Some-se a esse absurdo o massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 sem-terra foram policiais militares – nove anos depois da tragédia, o caso se arrasta nos tribunais e ninguém foi punido.

O governo federal, que tem uma forte ligação com as questões agrárias – a própria ministra Marina Silva foi companheira de Chico Mendes, assassinado em 1988. Espera-se que, com o grau de repercussão que o caso da irmã Dorothy tomou, o governo do presidente Lula, que era amigo de Chico Mendes, não fique no discurso. É preciso – mesmo – rigor, e muito rigor, nesse crime, ou a desmoralização do Estado vai causar mais e mais mortes.

Enquanto escrevo este artigo, por exemplo, leio na Internet que mais um crime acaba de acontecer no Pará, desta vez em Paraupebas. O ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais daquela cidade, Daniel Soares da Costa Filho, foi morto com seis tiros na manhã desta terça-feira, 15. Vou parar por aqui. Os marginais poderosos do Pará estão desafiando o Estado. É fato. O Brasil se transformou em uma praça de guerra no campo – quem vai se levantar contra essa barbárie?

José Rocha, 44, é autor dos livros "Espelho quebrado", "Batatas fritas ao sol", "O verbo por quem sofre de verborragia", "Coração de Leão" e "A lua do meio-dia" (no prelo).


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