Manoel, um Monteiro
09 de janeiro de 2008 - Jose Rocha

A família de meu pai, Manoel Monteiro de Sousa, assim, com s, veio de Portugal. Os primeiros Monteiros chegaram na região do Acarau – foram eles os descobridores e os responsáveis pelo povoamento da Lagoa dos Monteiros, no município de Cruz – há pelo menos dois séculos. A partir dali, se espalharam por cidades como Santana do Acarau - onde meu pai nasceu -, Camocim, Morrinhos, Jijoca de Jericoacoara, enfim...

Levantando a árvore genealógica da família, descobri, com a ajuda de uma prima que hoje vive em Londrina, no norte do Paraná, que somos descendentes dos primeiros Monteiros que chegaram no Ceará e de índios que habitavam o litoral norte do nosso Estado. Meu avô materno, Luis Marques de Sousa, sempre com s, filho da união de um índio com uma portuguesa, foi poeta, repentista nas feiras de Santana do Acarau.

A Lagoa dos Monteiros, para nós, se transformou em referência para o início, ponto de partida de nossas origens. E, em pleno ano de 2008, é para lá que volto minhas lembranças. Foi de lá que meu pai saiu, aos 16 anos, em 1948, para "ganhar o mundo", como ele dizia, e viver em Fortaleza, onde se casou, 10 anos depois, com minha mãe, Maria Letícia Rocha de Sousa, também descendente de índios e filha de um poeta bissexto, Eliézer de Lima Rocha – dos Rocha Lima, eles mesmos, do grande Raimundo Antônio da Rocha Lima, o escritor.

Meu pai foi o maior trabalhador que conheci em toda a minha vida. Lembro-me dos tempos ruins que passamos, em minha infância, por conta dos problemas sociais que nossa terra sempre apresentou – e gerou o êxodo de cearenses pelo Brasil e pelo mundo afora. Minha infância – e a de minhas irmãs – foi, por isso mesmo, dividida entre a capital, onde nascemos, e o sol escaldante de Banabuiu e Jaguaribe.

Operário, meu pai foi trabalhar na construção de um açude em Banabuiu. Mais tarde rumamos – com ele e minha mãe – para Jaguaribe, onde ele foi ser empregado dos Diógenes. Lembro-me que ele trabalhava num hotel da família Diógenes, o Cruzeiro, na entrada da cidade, e que era, ao mesmo tempo, borracheiro e frentista do posto de gasolina que ali havia.

Não me lembro do nome do Diógenes que nos acolheu, mas sei que o chamávamos de "Pagão". Era um grande sujeito, meio "pai" daquela família de eternos retirantes. Tenho boas recordações tanto de Banabuiu quanto de Jaguaribe, que, no dizer do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, viraram um quadro na parede. Foi na agradável Jaguaribe, aliás, que comecei a estudar, no antigo Carloto Távora.

Meu pai, como escrevi, trabalhador de lavra rara, me ensinou os segredos de se plantar nas vazantes, e um dia, em meados dos anos 70, nos avisou que partiríamos para São Paulo. Eu, que o vira trabalhar na construção do estádio Plácido Castelo, o Castelão, palco de meus primeiros grandes ídolos, fui o primeiro a dar o pulo, e o meu primeiro pulo de "não".

Fui vencido pela autoridade de meu pai e lá fomos nós, BR-116 afora, viver em São Paulo, com a melodia de "Triste partida", de nosso Patativa do Assaré, cantada por Luiz Gonzaga, em nossos ouvidos. Em São Paulo, o Monteiro Manoel, meu pai, foi de tudo, principalmente pai. Ele nos dizia, de vez em quando, que, quando pudesse, voltaria para o nosso querido Ceará, outro quadro que penduramos em nossa parede de memórias – e saudades.

Fui o primeiro a voltar, uma, duas, três, dezenas de vezes, para, como eu dizia a ele, não perder o sotaque e aguar as raízes. Mas meu pai nunca voltou. Em julho de 2003, o forte e trabalhador Manoel Monteiro de Sousa, um cearense de primeira, nos deixou, em casa mesmo, em sua cama, nos meus braços.- e nos de minhas irmãs e minha mãe, que também foi-se embora em outubro de 2004.

Hoje, vendo meu pequeno neto correndo pelo quintal, porque ainda há quintal, as lágrimas escorrem pelo meu rosto, não mais o do menino nascido no primeiro ano da década de 60. Dói o quadro na parede. Dói a imagem de meu pai, sofrida, e a de minha mãe, tão feliz com o primeiro bisneto, mas cujo coração não resistiu a uma saudade que, sei, ela escondia sob o olhar sereno de quem morre de amor.

E acho lindo quando ele, meu netinho, me olha e me pergunta: "O vovô ta triste?". Ele, miudinho, já faz essas perguntas, que não me embaraçam – muito pelo contrário, me aliviam a dor e a saudade de "seu" Monteiro e de dona Letícia. E a vida segue, como bem deve seguir (assim escreveu Sivuca), desde os primeiros Monteiros, vindos de Portugal, na região do Acarau, até esses dias saudosos, renovados a cada geração – com um choro escondido, mas orgulhoso de quem nos trouxe à vida.

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